O Ovo Sagrado

Aquele ovo branco e modesto, ou o ovo azul, são tão lindos que até doem nos ossos
 
NÃO É preciso ler Clarice Lispector para se entusiasmar com o ovo. Ovo de galinha, no ninho, translúcido.
 
O ovo está impresso no corpo da mulher. Cabe na mão, quente, protegido, dá sombra, é bom de encostar no rosto, refresca, dá vontade de ninar, de lamber.
 
Seu Estevão, que Deus o tenha, saía pelos ninhos pegando os ovos e sacudindo um por um no ouvido para lê-los. Eu ia atrás, imitando, como uma Lucille Ball, ávida para entender os óvi, como ele dizia, mas sem nunca conseguir nem indícios do que ele procurava. Por mais que o ovo tenha virado coisa de supermercado, não lhe tocou a feiúra, continuou impávido e lindo como no próprio ninho.
 
Os de Páscoa ameaçam te matar, caindo na sua cabeça naquele kitsch colorido, dourado, prata e vermelho, mas o verdadeiro ovo está ali, branco puro, o branco de todas as cores, misterioso, guardando segredos e conversinhas na caixa de papelão. É claro que com toda esta potência, virou místico, religioso, representando fé e vida.
 
Na Rússia, o ovo de galinha que se decora e se dá de presente na Páscoa tem o nome de Pysanski, do verbo "pysaty”, escrever. São ovos escritos como os ícones russos. Como é que sei disso? Um ovo de galinha me contou. E podem ver também no livro "L’Uovo di Pasqua”, de Pierugo Manasse, publicado pela editora Fratelli Palombi.
 
E, para adivinhar esses ovos russos, é preciso ter a chave de leitura dos símbolos. "Escrevê-los” ou pintá-los é um ato sagrado. A mãe e a filha mais velha se juntam na véspera da Páscoa, pedem a bênção e a ajuda de Deus e pintam os ovos em silêncio, ou rezando e escutando música sacra, num ritual semelhante ao da pintura de ícones. Abandonam-se à reza e à meditação e experimentam um momento do divino. Dizem elas, e acredito.
 
As "letras” são o sol, a lua, as estrelas, a espiral, o cervo, a serpente, o cordeiro, o boi, o leão, a água, a águia, o peixe, a pomba, o pavão, o galo, o corvo, os insetos, a borboleta, a árvore, a caverna, a fruta, a flor, o grão, a cruz e mais e mais. O mundo, enfim. O abecedário do ovo é o mundo. Mas o que quero dizer é que são muito lindos esses ovos russos, mas não somos russos e não precisamos nem pintar nem rezar para ter a sensação de que ovo é sagrado. Aquele ovo branco e modesto, ou o ovo azul, que já sai pintado de dentro da galinha, são tão lindos na sua elipse perfeita que até doem nos ossos.
 
No dia da Páscoa, os russos (chegaram de novo), levam os ovos pintados em cestas até a igreja, e o padre os benze na missa. Depois, o povo se cumprimenta com as palavras "Cristos Voskrès” (Cristo ressuscitou).
 
E fazem bailes, dançando e glorificando a vida. Outro costume é jogarem os ovos num rio anunciando às almas dos mortos que a Páscoa foi celebrada direitinho, conforme o costume.
 
Na Ucrânia, há uma lenda antiga, segundo a qual o destino da humanidade depende do número de ovos pintados no ano. Fazem uma cadeia que segura o demônio e, se for pequena, o diabo se soltará e virá destruir a humanidade. (Hum, será que por falta desses artifícios e costumes é que o diabo anda solto por aqui?)
 
Como não temos essa lenda e não faz parte de nosso repertório, basta enfeitar o centro da mesa com uma tigela cheia, bem cheia de ovos de galinha. Até pode ser da caipira. São de uma beleza maior, batem qualquer Fabergé, chocolate ou cristal, ou papier maché.
 
Na verdade, acho que uma coisa tão iluminada não precisa de outros artifícios, mas é o gosto de se mexer com algo já completo, não deixar em paz o que está pronto. Todos temos um pouco disso, um não-saber parar diante do perfeito e adicionar uma florzinha. Mas é próprio se curvar diante de um ovo de galinha, podem crer.
 
Fonte: Folha.com - Nina Horta